quinta-feira, 1 de agosto de 2013

PARTE 1: O PAPAI ESTÁ MORTO

Era verão, e como de costume Helen estava sentada na sua cadeira predileta na varanda da antiga casa dos seus avós em Montijo, Portugal. A família vivera naquela casa desde os tempos em que a cidade ainda era conhecida por Aldeia Gallega do Ribatejo e a velha construção apresentava ainda quase toda a sua estrutura firme apesar da aparência triste das antigas janelas e do piso de madeira que se foram desgastando com o tempo. Na verdade, esse era um dos aspectos que Helen mais gostava na casa dos avós, a impressão de estar pisando nas pegadas de gerações e gerações de ancestrais que viveram ali, podendo ouvir a cada passo o ranger das velhas tábuas de madeira como se fosse o som do andar de parentes que ela jamais conhecera. E sentar-se ao entardecer na velha cadeira feita pelas mãos do seu bisavô, durante a gravidez da sua esposa, que na época carregava o seu primeiro filho, para que esta pudesse descansar as pernas castigadas pelos nove meses de gestação. Era feita de madeira de mogno talhado à mão, com grandes almofadas, das quais o revestimento já havia se desgastado e sido substituído por diversas vezes ao longo de sua existência.

Helen tinha então 19 anos, mas conservava o jeito de menina despreocupada e moleca, estava sempre passeando descalça pelas ruas da cidade, brincando com os cachorros que encontrava no caminho, conversando com as donas de casa pelas janelas e cantando com os trovadores nas praças. Chegava em casa e ia comer na cozinha, não fazia questão de formalidades, regras ou responsabilidades. Dormia quando tinha sono, e isso não significava exatamente à noite, pois costumava ficar com os horários trocados e ir dormir às quatro da tarde, para acordar às onze da noite e passar a noite acordada lendo os clássicos da estante do avô. De longe o seu preferido era Madame Bovary de Gustave Flaubert, e todo ano quando chegava à casa dos avós, antes de se aventurar nas páginas dos livros ainda não conhecidos ela fazia questão de relê-lo.

Nunca teve uma religião de verdade, apesar de ter nascido em uma família tradicionalmente católica. Certa vez, quando tinha por volta de seus 13 anos escreveu em um pedaço de papel “Deus existe” e colou dentro da porta do armário. Com o tempo passou a questionar essa verdade e, aos 16 acrescentou uma interrogação no papel, “Deus existe?”. E nunca mais se preocupou em pensar no assunto. Porque a vida seguiu adiante independente disso, até o dia da visita surpresa de Thiago.

Como de costume, o avô de Helen a levou para ajudar a escolher o peixe na feira. Era uma tradição familiar de várias gerações, ir à feira no domingo comprar o peixe e assistir à banda que tocava no coreto da praça. Helen adorava esses costumes dos avós e ajudava a avó a limpar e preparar o peixe quando voltavam pra casa.

O avô de Helen se chamava Manoel Ferreira e havia sido coronel da polícia antes de ser aposentado devido a um grave acidente que inutilizou a sua perna esquerda. Andava sempre com ajuda de uma bengala, recordando os tempos em que organizava as rondas noturnas, perseguia ladrões de banco e diversas outras aventuras que contava para a neta repetidamente todo verão. Ela não se importava em ouvir as recordações do avô, gostava de fechar os olhos e imaginá-lo ainda moço, vestindo a farda engomada e as botas reluzentes. Tudo aquilo fazia parte do seu ritual de todo verão e ela apreciava cada momento que passava distante da realidade que deixava no Brasil. Sentava ao lado da velha máquina de costura enquanto a avó Ana Lúcia fazia os reparos nas camisas do avô. Ajudava vez ou outra pregando alguns botões, mas não levava muito jeito para trabalhos manuais então acabava apenas fazendo companhia para a avó.

Nesta tarde, quando Helen e o avô chegaram em casa com o peixe trazido da feira, se surpreenderam com a presença de Thiago, primo de Helen que estudava em Lisboa e passavam alguns finais de semana na casa dos avós. Thiago era um jovem alto, magro, com cabelos negros que acentuavam a sua falta de pigmentação e seus enormes e atentos olhos verdes.

- Finalmente você apareceu! Pensei que não te veria nessas férias. E ela abraçou o primo, despejando seu peso sobre ele e quase caíram juntos.

Os dois riram de si mesmos. Thiago também viveu no Brasil a vida inteira com seus pais, mas mudou-se para Portugal com a mãe aos 15 anos, após o divórcio dos seus pais. Agora morava com a mãe em Lisboa e fazia faculdade de Direito. A sua mãe, Maria de Lourdes era irmã da mãe de Helen, que se chamava Maria Aparecida. Helen achava engraçado o modo como todas as sete filhas de seus avós tinham o nome de Maria. Ela e Thiago foram criados praticamente como irmãos e tinham uma ligação muito especial, que mesmo depois de oito anos morando longe continuava forte. Os dois se viam todo ano quando Helen ia passar as férias na casa dos avós ou quando Thiago ia ao Brasil visitar o pai. E os dois mantinham contato por e-mail durante o ano. Algumas vezes Helen mandava cartões postais de lugares que costumava frequentar com o primo, e contava de como tudo perdia a graça sem ele por perto.

Até então nenhum dos dois imaginava o que estava por vir naquela noite. Normalmente Thiago não se dispunha a viajar até Monjijo em pleno domingo, tendo que estar de volta em Lisboa para a aula de segunda de manhã. Mas uma preocupação repentina com o bem-estar da prima deu a ele um sentimento de urgência, como se algo tivesse acontecido ou estivesse prestes a acontecer e só ele pudesse evitar. Naquela tarde os dois saíram para caminhar à margem do rio e aproveitaram para conversar.

- Sonhei com você essa noite, baixinha. Ele contou com um ar preocupado e sério.

- Que gay! Os dois riram.

- Fiquei preocupado que algo pudesse ter acontecido e ninguém ter me contado.

- Fica tranquilo, que nada acontece por aqui...

E os dois conversaram durante o resto da tarde, sobre os acontecimentos do ultimo ano que passou, os amigos em comum que tinham no Brasil, os planos para o futuro e tudo o mais que puderam conversar. Chegaram em casa a tempo do jantar. Antes de ir dormir, Helen pediu ao primo que ligasse no dia seguinte para os seus pais no Brasil para saber notícias. Ela havia conversado com eles por telefone no dia anterior, mas de repente uma incerteza tomou conta dela, sem que ela entendesse o porquê.

Pela primeira vez em dias ela dormiu a noite inteira e quando acordou apenas abriu os olhos e disse “o papai está morto”.

A cidade de Montijo

quarta-feira, 31 de julho de 2013

PONTO DE CONVERGÊNCIA: APRESENTAÇÃO

A breve história de Helen, uma jovem que perde os pais aos 19 anos e se vê diante de uma nova vida que se mostra para ela como a lembrança de um sonho que ela nunca teve.
Dividida entre acreditar que o seu destino foi escrito para ser assim ou tomar as rédeas da situação e se aventurar naquilo que antes parecia impossível, Helen conta agora apenas com o apoio dos amigos que encontra pelo seu caminho para superar as adversidades que cada vez mais se apresentam a ela.
Emocionante, surreal e única, esta história se desdobra em situações inimagináveis que levam a nossa protagonista a um desfecho igualmente inacreditável.

Muitas pessoas acreditam que tudo acontece por algum motivo, que precisamos passar por determinadas situações que fazem parte do nosso aprendizado na vida e que estamos fadados a viver o que nos foi destinado viver. Não a Hellen, ela sempre foi cética demais para acreditar nesse tipo de coisa, destino. Ela nunca acreditou que o futuro poderia ser previsto, que sua vida poderia ter sido escrita desde antes de ela nascer. Esse tipo de crença nunca passou pela cabeça dela.

A vida de Hellen se desenrola de uma maneira inimaginável após a morte dos seus pais e o destino passa a ser escrito pelas mãos jovens de uma garota que se vê forçada a amadurecer e superar situações beirando o fantástico para aprender a viver a nova vida.

Se houvesse um modo de prever o futuro, se ela soubesse que perderia os pais ainda tão jovem, talvez houvesse alguma maneira de evitar aquele acidente. E se os seus pais não sofressem o acidente, nada do que estava por vir após as mortes tivesse acontecido. E então não haveria esta história.